quarta-feira, 8 de abril de 2020

O Pacto da Letargia


   
   Ponto prévio: tenho com a banda desenhada de Miguelanxo Prado uma relação de amor. Há qualquer coisa no seu desenho, e no uso que faz da cor, que nos transporta para um lugar de conforto. As personagens, mesmo quando são de moralidade questionável, têm qualquer coisa de profundamente humano na forma como o autor as desenha. À falta de melhor expressão, a banda desenhada de Miguelanxo Prado parece sempre vir de um lugar bom (mesmo quando é irónica, sarcástica ou mais "negra").
   Foi por isso com especial prazer que recebi o anúncio da Ala dos Livros que a nova obra de Miguelanxo Prado teria lançamento mundial em Português. Durante 3 semanas, quase diariamente fui perguntando na Livraria Ler (com a sua boa e compacta secção de BD) se já estava disponível, até que acabei por não resistir mais e dirigi-me à FNAC para adquirir o livro. Lido de imediato, estes dias de quarentena mereceram uma releitura bem mais cedo do que o normal. E mês e meio depois voltei às páginas deste Prado.
   Em O Pacto da Letargia a (falta de) harmonia que a raça humana tem com o planeta que habita (com Gaia na expressão utilizada no livro), serve de mote a uma aventura com magia, misticismo, algum mistério e um confronto clássico entre o bem e o mal - na forma de criaturas místicas despertas antes do tempo devido, para julgar a humanidade pelo que tem feito. Sendo que o mal não está necessariamente errado nos fins que procura, ainda que o esteja nos meios para o alcançar…
Página Inicial
   Bem e Mal (Griam e Xamaín) contam com aliados humanos para alcançar os seus fins e é nessa construção de personagens que Prado melhor brilha no argumento. A construção das personagens é bastante clássica, mas as nuances de personalidade que Prado lhes dá fazem toda a diferença. O humor ácido e irónico magistralmente presente no duo Lucho e Indalécio, um par de vilões de aluguer a quem os “trabalhos de profissionais” parecem sempre correr com algum percalço, Faustino Traba, o aristocrático, fiel retrato do alcance da estupidez humana e Figueira Chao o clássico oportunista cujo “sucesso” de vida foi sempre alcançado em esquemas que prejudicam outros em seu benefício. Do lado do bem, o jovem idealista e ainda inocente Artur, que encontra o seu mestre no velho Professor Ancares Díaz, e cumplicidade na bela Lúa, humana ainda portadora de um pouco da Magia que em tempos adormeceu no mundo.
   No final, a estória não vai muito longe daquilo que sempre pensámos que poderia acontecer (ao contrário de Presas Fáceis, o anterior livro do autor, bem menos linear no argumento), mas fica aquela sensação de que também não era suposto acabar de outra forma. E o conforto (lá está uma vez mais o conforto) de um livro que se acaba de ler e nos deixa com a boa sensação de termos gostado de o ler.
    
  
   Claro que essa sensação só é possível porque Miguelanxo Prado desenha, também neste livro, de forma maravilhosa. Notável no desenho das personagens e na forma como a sua fisionomia induz parte da sua personalidade, incrível nas paisagens naturais (de que o prelúdio é excelente exemplo) e perfeito na forma como utiliza a cor para dar textura e dimensão a personagens e cenários.
   Uma última palavra para a edição: a Ala dos Livros tem pouco tempo de edição mas um catálogo já bem apreciável para uma editora a cumprir agora o seu 2º aniversário. E é manifestamente gerida por gente que percebe o prazer que um leitor tem em ter livros bons, mas também livros belos na mão. Este O Pacto da Letargia cumpre o propósito: capa extraordinária (o desenho de Prado é incrível), papel de qualidade, formato adequado ao desenho de Prado (ainda que fique com vontade de ver este livro em versão oversize) e com uma escolha particularmente feliz nos tipos de letra na legendagem. Fica a mancha de um erro de legendagem grosseiro na fase inicial do livro (página 19) que a obra de Prado e a própria editora não mereciam.
   Não é o melhor livro de Prado, mas Prado, mesmo quando não está no seu melhor, é muito melhor do que a maioria dos outros. E para os que gostam de ler pelo prazer de ler é obrigatório comprar este Prado.

Para um outro ponto de vista, a análise crítica no blog As Leituras de Pedro: http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2020/01/o-pacto-da-letargia.html

Para conhecer um pouco mais sobre o autor, a entrevista de Miguelanxo Prado (Somos lo que Recordamos) ao canal Youtube LIMAIA.TV em 2017 - 48 deliciosos minutos:
https://www.youtube.com/watch?v=_rML-G0FlLs



O PACTO DA LETARGIA
Argumento, Desenho e Cores: Miguelanxo Prado
Ala dos Livros - Janeiro de 2020
240mm x 320mm, 104 páginas, capa dura
24,90 €

Avaliação:





2 comentários:

  1. Boa noite

    Parabéns pelo seu blogue. Li as suas críticas deste livro e do post anterior e concordo em pleno com as suas análises. Estou ansioso pelos novos volumes de "Lucky Luke de autor" já anunciados pela A Seita. Já coloquei o link deste blogue no meu, retribuindo com amizade a sua linkagem. Abraço

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    1. Obrigado caro José pelas simpáticas palavras e sobretudo pelo imenso trabalho que tem feito pela Banda Desenhada em Portugal com o seu blog e com o Catálogo de Banda Desenhada publicada no nosso país.

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