segunda-feira, 1 de junho de 2020

Sleepwalk / Comer Beber


Capa da 1ª edição - Dezembro 2017
   O Filipe Melo é alguém singular no nosso panorama cultural: já fez de tudo um pouco, da música à BD e ao cinema. 
   O que mais admiro no Filipe Melo é que é aquele tipo de pessoa que quando tem uma ideia faz com que essa ideia aconteça: e faz com que aconteça com qualidade! No início deste Milénio (em 2003, mais precisamente) escreveu e produziu o primeiro filme de zombies português, I'll See You in My Dreams, e venceu o prémio de Curtas-metragens do Fantasporto. E porque quando faz, faz com qualidade, ainda tivemos o bónus da banda sonora dos Moonspell.
   Uma mão-cheia de anos depois, quis escrever uma BD e foi encontrar no outro lado do equador um argentino desconhecido cheio de talento (Juan Cavia) para desenhar o seu Dog Mendonça e Pizza Boy. Só que uma vez mais, era para ser bem feito, e como só o mercado português não era suficiente, conseguiu o feito de ser o ÚNICO argumentista português a publicar numa editora top do mercado Americano (para a Dark Horse) e repetiu a dose nos capítulos seguintes da saga. Por cá, apesar de não termos números de vendas divulgados, deve ser um dos livros de BD portugueses mais vendidos de sempre.
   Mas mesmo quando são projectos que parecem pequenos, o Filipe tem o seu toque de Midas: começou por ir ao cinema com o Senhor do Adeus e com o Tiago Carvalho, continuou só com o Tiago de Carvalho e mais meia-dúzia de “malucos” no Corte Inglês e acabou com uma tertúlia de cinema que semana após semana enchia o Nimas.
   Para a geração que está agora entre os 30 e poucos e os 40 e muitos (onde me incluo), o Filipe Melo fez aquilo que todos gostaríamos de ter feito: foi um geek que passou a fazer parte da cultura geek.

Capa da 2ª edição - Novembro de 2018
   Em 2017 (já depois de 4 Dog Mendonça e o excelente Vampiros) voltou à BD com um enorme pequeno projecto: na revista Granta aparece Sleepewalk, 28 páginas de BD que são um dos melhores exemplos que conheço de que não precisamos de muitas palavras e imagens para contar uma (muito) boa estória. Só precisamos de ser (muito) bons contadores de estórias.
   Quando foi publicada, a discussão na blogosfera foi bem reveladora da pequenez do mercado de BD português: 19 euros da revista Granta n.º9 (partindo do pressuposto que só queremos ler BD), eram demasiado caros para o tamanho da estória. E pouco tempo depois quando Sleepwalk ganhou a companhia de outra estória, Majowski, no livro Comer Beber, os 15 euros das 72 páginas também era demasiado. Como se a qualidade do que lemos, fosse proporcional ao número de páginas ou peso do livro…

A arte de Sleepwalk em BD
   Um ano depois, Sleepwalk conheceu uma versão em cinema: falhei a sessão de estreia em 2018 no Indie Lisboa e só nesta quarentena, no final de Março de 2020, com a disponibilização gratuita no YouTube, pude apreciar este “novo” projecto do Filipe Melo.
   Muda o meio, mas voltamos outra vez ao mesmo: tudo aquilo que precisamos para nos deixar satisfeitos é uma (muito) boa estória e um (muito) bom contador de estórias. O ritmo da BD é naturalmente diferente do filme. Os 5 minutos de BD passam a 15 minutos de filme e aquilo que é contado em algumas vinhetas na BD, ganha novas pausas nas imagens da curta-metragem. O cenário é um retrato fiel do que Juan Cavia já tinha posto em papel e o argumento de Filipe Melo é (quase) rigorosamente o mesmo, embora com um subtilmente diferente pormenor no final.
   Ganhamos no filme a banda sonora de Filipe Melo interpretada por Norberto Lobo, que na releitura que fiz da BD pouco tempo depois de ver o filme, continua a estar presente como se sempre ali estivesse (o Filipe Melo bem pode pensar em publicar, conjuntamente, o seu próximo livro de BD com Banda Sonora).
Autógrafo de Juan Cavia e Filipe Melo
   Comer Beber é fisicamente um livro algo estranho: formato muito pequeno (uns 13,5 x 19 cm provavelmente inéditos na BD portuguesa) que por vezes parece não deixar respirar a excelente arte de Juan Cavia. Mas que por outro lado, dá às estórias que contém, um aconchego certo para as emoções com que trata.
   Sleepwalk / Comer Beber, são excelentes exemplos de pequenos tesouros que a produção cultural portuguesa vai produzindo: ganha o livro, por que tem mais uma estória, Majowski, parceiro certo (o Beber) de Sleepwalk (o Comer). Pelo menos enquanto o Filipe Melo não fizer essa versão cinematográfica.
   E se o Filipe Melo, nas notícias que têm vindo a público, está embarcado num novo projecto de BD distinto para este 2020, só podemos esperar como leitores, que regresse a este Comer Beber mais algumas vezes: parecem ter ficado ainda muitas estórias gastronómicas por contar.

Sleepwalk disponível em:

Filipe Melo numa Ted Talk:

Como tudo começou (I´ll See You In My Dreams):

Sleepwalk
Argumento e Realização – Filipe Melo
Música – Filipe Melo e Norberto Lobo
Força de Produção - 2018
14min. 35seg.

Comer Beber
Argumento – Filipe Melo
Arte – Juan Cavia
Tinta da China – Dezembro de 2017. 2ª edição com nova capa em Novembro 2018.
135 x 190 mm, 72 págs., capa dura
13,90€ 

Avaliação (da curta-metragem e da BD):

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Harley Quinn - Através do espelho



   



   Sou um fã do Universo Batman. Tenho um tapete à porta a dizer “Welcome to the Batcave”; dezenas de bonecos Batman e amigos (e inimigos); comprei a edição de selos Harley Quinn (e agora os do Joker) que os CTT lançaram; os meus chinelos de quarto são Batmobiles entre mais umas quantas coisas assim meio-parvas; e claro, uma larga colecção de banda desenhada de Gotham City.
   Tenho vindo a apreciar de forma crescente a Harley Quinn, à medida que se vai transformando em personagem por direito próprio, ganhando complexidade e densidade, abandonando a faceta de ser só uma sidekick do Joker.
   Motivações mais do que suficientes para adquirir este Harley Quinn – Através do espelho, que a Levoir recentemente editou (Março 2020).
   Por outro lado, desconhecia totalmente o trabalho de Mariko Tamaki (ainda não tive a oportunidade de ler o tão elogiado Finalmente o Verão editado pela Planeta Tangerina) e resumiam-se a pouco mais que uma mão cheia, as páginas desenhadas por Steve Pugh que alguma vez tinha visto.
   E sobretudo tinha lido um rol imenso de críticas a este Através do espelho (Breaking Glass no original) de fãs irados com o que Mariko Tamaki tinha feito a esta Harley Quinn.

   Originalmente editada para um público mais jovem (na chancela DC Ink), a Harley Quinn de Mariko Tamaki é uma Harley Quinn bem diferente da que Paul Dini e Bruce Timm criaram. Tamaki reconta a estória de uma Harleen Quinzel ainda adolescente, e de como a chegada acidentada a Gotham City a vai conduzindo até à Harley Quinn que reconhecemos.
   Pelo meio, um universo Batman aparentemente só vagamente comum com o universo Batman conhecido por todos, mantendo nomes de algumas personagens, mas dando-lhes estórias e origens bem diferentes das oficiais. Mariko Tamaki vai tão longe neste processo de recriação, que num primeiro momento julgamos estar a ver apenas personagens que por acaso têm o mesmo nome de alguns dos habitantes mais conhecidos de Gotham, e só isso.
   É aqui que Tamaki é particularmente habilidosa no argumento que criou: despe totalmente a Harley, a Poison Ivy e o Joker (os protagonistas) até encontrar um traço de personalidade ou característica que considera que os define enquanto personagens adultas. A partir desse traço constrói esta estória como uma origem possível para cada um deles. São os personagens que conhecemos? Não. São os personagens de Tamaki, mas em que ao mesmo tempo reconhecemos esse algo fundamental que caracteriza cada um deles.

   Até Gotham City sofre este processo de transformação de adolescência: de como uma Gotham familiar, sítio onde moram as avós (como a avó de Harleen), se vai moldando à chegada de heróis e vilões mascarados e de como esse processo a pode conduzir à Gotham sombria da idade adulta.  
   Mariko tem uma outra visão, fresca e muito inspirada sobre o Universo Batman. Não é uma visão que agrade a todos? Quando já nem o Dark Knight Returns de Frank Miller é consensual para quem gosta de Batman, dificilmente poderia ser. Mas é a visão mais interessante que li nos últimos tempos e dou por muito bem gastos os 19,90€ (menos os 10% de desconto da praxe) nesta Harley Quinn – Através do espelho. Fica seguramente como um dos melhores livros que li este ano.
   Como se não bastasse (ou para quem não baste) há ainda a arte de Steve Pugh, artista que irei seguir atentamente nos próximos tempos. A arte de Pugh é mesmo muito, muito boa e a utilização que faz da cor, transforma-a em algo de nível superior. Basta olhar para a capa desta edição portuguesa (ainda bem que a Levoir não optou pela capa da edição original) e ficamos a saber ao que vamos.

   A edição da Levoir é a habitual desta editora e não compromete: capa dura brilhante, zero extras mas, infelizmente, o (pequeno) formato original da edição americana. Esta Harley Quinn e a arte de Pugh, têm estatuto para merecer outra dimensão (física) de livro. 
 
Para um ponto de vista completamente diferente sobre a obra, em Vinhetas 2020:

Para o trailer oficial da DC de “Breaking Glass” (Através do espelho)

Harley Quinn – Através do espelho (Breaking Glass)
Argumento – Mariko Tamaki
Desenho – Steve Pugh
Levoir – Março de 2020
165 x 235 mm, 202 págs., capa dura
19,90€

Avaliação: 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

HABIBI


 
   
   Desde que a DEVIR publicou a edição portuguesa em 2014, que Habibi constava na minha lista de obras de banda desenhada a adquirir. Conhecia do autor Craig Thompson o maravilhoso Blankets e Habibi seria uma escolha óbvia e natural de aquisições próximas. 
   Mas por uma ou outra razão (sobretudo o preço, €39,99, ainda que facilmente justificáveis pelas 672 páginas) outras prioridades foram avançando e Habibi foi ficando pelo caminho. Até que esta Quarentena e as muitas horas de reclusão, me fizeram encontrar no OLX o livro como novo, a um preço simpático. Alguns dias mais tarde, recebi os 1,632Kg de livro e alguns dias de leitura pela frente.
   Com o selo da colecção Biblioteca de Alice (que tem trazido o que de mais interessante a DEVIR tem publicado nos últimos anos), a edição portuguesa de Habibi é de muito boa qualidade. Discussão à parte sobre o desconforto que é ler um livro de 672 páginas com o peso que tem, a edição é cuidada, a encadernação é excelente (essencial para este volume de livro) e a DEVIR não se poupou sequer aos dourados que preenchem a capa, contracapa e lombada e que tornam Habibi num livro visualmente bonito.
   Se por fora Habibi convida à leitura, quando abrimos o livro a primeira impressão é marcante: a arte de Craig Thompson é maravilhosa e parece ainda melhor que em Blankets. O calor da expressão das personagens, a qualidade dos cenários, a riqueza dos abundantes arabescos, tudo concorre para um espectáculo visual grandioso. Se há autores cuja arte parece ter nascido para ilustrar Romances Gráficos, Thompson é sem dúvida um deles.
A maravilhosa arte de Craig Thompson
   Enquanto dura esse espectáculo visual, durante centena e meia de páginas ou um pouco mais, fica aquela sensação inigualável para um leitor, de que podemos estar a ler uma obra-prima, um daqueles livros que colocamos no nosso panteão de leituras. Que coincide também em termos de argumento, enquanto Craig Thompson quer apenas construir a relação entre Dodola e Zam, as personagens do livro. E nesse registo das relações, e as suas diversas e ricas nuances, Thompson é um absoluto mestre como já tinha demonstrado em Blankets. 
 
   
   Só que a partir de determinado momento, Craig Thompson parece ir para fora de pé e Habibi transforma-se em muitas coisas diferentes e vai perdendo lentamente a identidade e a coerência interna que sustentam qualquer bom livro. De estória de amor e sobrevivência, passa a manifesto ecológico, a manual de iniciação ao islamismo, a panfleto sobre racismo e discriminação de género e a piscar de olho às Mil e Uma Noites de Xerazade.
   E ainda que essa estória de amor entre Dodola e Zam esteja sempre presente, deixa de ser suficiente para sustentar Habibi e acaba também ela por naufragar nas muitas coisas em que este romance gráfico se transforma.
   Acabamos por perceber as limitações de narrativa do próprio Craig Thompson: enquanto conta uma estória que é sua (e a de Blankets é-o sem dúvida alguma) consegue-nos levar ao sítio exacto onde nos quer levar. Quando conta uma estória retirada do seu universo de referências (ainda que possa ser o seu universo de interesses…), perde-se e perde-nos como leitores, e fica aquela sensação de que não está a dominar aquilo que está a escrever. 
   
   Habibi é um mau livro? Claro que não. 672 páginas da belíssima arte de Craig Thompson justificam plenamente as horas de leitura concedidas.
   Mas Habibi promete muito mais do que aquilo que consegue dar, o que é normalmente fatal para um livro. E sobretudo Habibi não está perto da qualidade de Blankets: e quando se escreve uma obra com a qualidade de Blankets, ficamos à espera que as obras seguintes estejam pelo menos perto de ser tão boas.

Para uma espreitadela à obra fica o Teaser publicado pela DEVIR:

HABIBI
Argumento e Desenho: Craig Thompson
DEVIR - Outubro de 2014 (Colecção Biblioteca de Alice)
160mm x 228mm, 672 páginas, capa dura
39,99 € (actualmente em promoção “Dia do Livro” na DEVIR por 30€)

Avaliação:
(pela arte)